Fichamento: Sobre o mito do malandro no samba carioca. “Acertei no milhar”, de Cláudia Matos.

Yaci
7 min readMar 20, 2020

Segundo fichamento parte das avaliações do Curso de Verão 2020.1 do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Tema: “90 anos da Revolução de 30 — principais aspectos políticos e culturais do governo Vargas (1930–1945)”.

Fichamento: MATOS, Cláudia. Acertei no milhar (pg. 77–127).

  1. Relação e transformação do conceito de malandragem — cultura popular — o mito da malandragem presente no samba carioca — décadas de 20, 30 e 40 do século XX: Discurso do malandro. O discurso do malandro é um discurso negativo sobre o trabalho no sistema capitalista. É uma crítica à pretensa acumulação de capital através do trabalho individual que supostamente garantiria a ascensão social. Elogio a “orgia, a gandaia, a fuzarca” (MATOS, pg. 78, 1982). Crítica das normas sociais que determinam o modo de funcionamento da vida cotidiana, do papel do proletariado no sistema capitalista.
  2. O malandro, portanto, é o proletário que possui certa “esperteza” para dobrar as regras do trabalho capitalista à sua vontade criativa, através do seu discurso, do samba, da “vida de artista”. Possui “jogo de corpo e jogo do discurso”, capacidades físicas, estéticas e intelectuais. Apropria-se da produção do conhecimento de elite e a subverte, sem perder sua identidade cultural. Situa-se entre o trabalhador, formalmente adequado à dinâmica capitalista, o “otário”, e o patrão, usufrutuário desta dinâmica. Relação malandro — otário. O malandro e o otário são partes integrantes de um sistema econômico de classes rígido. Contudo, no discurso do malandro, a sua própria figura é exaltada diante de sua capacidade de estar na fronteira das classes, enquanto o “reles” trabalhador é depreciado pela sua inabilidade ou conformismo.
  3. O lugar do trabalhador na dinâmica social capitalista: No discurso do malandro presente em sambas cariocas, é denunciado o “confinamento” do trabalhador a sua posição de classe, demarcando a distinção fronteiriça, geográfica, entre a moradia e o local de convivência cotidiana do trabalhador e a moradia e os locais de convivência do patrão, da elite, onde o trabalhador não tem acesso, ao menos que seja a trabalho, e o malandro, quando exercita sua habilidade de estar na fronteira das classes, de estar no “lugar do patrão”, é visto com “maus olhos” pela classe dominante. A moradia, o local de convivência, o bairro do trabalhador, possui uma relação de identidade cultural e também de carência em relação a infraestrutura que a moradia e os bairros das zonas abastadas possuem. Noção de diferença. Contradições sociais. Dialética das classes demonstrada através do espaço geográfico

O barracão no morro, espaço do proletário e do samba, seja ele negativa ou positivamente marcado, nunca se avizinha ou se confunde com o espaço do rico, que é o “apartamento”. Na música popular, pobre em apartamento nunca é um trabalhador esforçado que mudou de vida — mas pode ser o malandro, que por isso mesmo é alvo de suspeita ou repressão […] (MATOS, 1982, pg. 81)

  1. O malandro, desta forma, por sua habilidade fronteiriça, situa-se como “guardião da fronteira”, “herói de sua comunidade”, portador dos conhecimentos da cultura popular que podem, através da sua figura, serem decodificadas através da linguagem do outro, da linguagem das elites, que o mesmo se apropria e subverte. Entretanto, profundas mudanças na política cultural do Estado e o desenvolvimento das indústrias radiofônicas e fonográficas, a partir do final da década de 20, terão importância para a transformação desse discurso.
  2. A oficialização do samba carioca como música popular e, mais além, como elemento da cultura nacional brasileira por parte do Estado contribuiu, ao mesmo tempo que valorizou econômica e culturalmente o trabalho de sambistas individuais (através do pagamento de direitos autorais por parte das empresas aos compositores, elevação de salários, ampla difusão cultural nas rádios, etc), renegados outrora pelos ouvidos eruditos da população abastada, para a utilização política e substancial mudança do discurso presente nesse gênero musical — o samba (ou samba-de-breque) — como parte de um novo projeto de “brasilidade” do Estado. Em 1930, o primeiro concurso de músicas carnavalescas. Em 1931, decreto de regulamentação das rádios para a operação desse serviço público por empresas privadas. Em 1932, decreto de autorização da transmissão de propaganda pelo rádio. Em 1933, a oficialização do carnaval carioca, através da programação da Prefeitura para os festejos momescos. Em 1937, um decreto do novo governo determinava que os enredos das escolas de samba deveriam tratar de temas históricos, didáticos e patrióticos. Em 1939, a oficialização do dia 3 de janeiro como o “Dia da Música Popular Brasileira”, com festejos a serem comemorados com a participação de artistas populares. Em 1940, a encampação da empresa “A Noite”, pertencente a Rádio Nacional Brasileira, líder em audiência. Tais atos exemplificam a capacidade das comunicações em massa que as novas indústrias proporcionaram para sociedade, para o projeto do Estado brasileiro e para a transformação do samba carioca em mercadoria e valoroso elemento cultural de massa.
  3. Para tanto, o discurso do malandro, muito presente nos sambas do final da década de 20 e metade da década de 30, sofreu uma progressiva transformação no final da década de 30 e na década de 40, onde o elemento de denúncia e rejeição ao trabalho no sistema capitalista é ambiguamente transformado em, ao mesmo tempo, um discurso de valorização do trabalho individual como parte da construção de um projeto coletivo de nação, e, claro, de possibilidade de ascensão social e de conformidade com os “valores da cultura brasileira”. Essa ambiguidade se deve também a uma demonstração das novas relações entre a classe trabalhadora e o Estado, principalmente na figura de Getúlio Vargas, líder da Revolução de 30, e no papel do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), responsável pela fiscalização, coordenação e promoção dos elementos culturais escolhidos para serem veiculados pelos mecanismos de difusão em massa e outros instrumentos de difusão cultural, organizados pelas empresas privadas ou mesmo pela esfera pública. Getúlio Vargas, nesse período, também era reconhecido, na sua relação com a classe trabalhadora, como um líder popular que possuía tanto elementos do malandro, quanto do “otário”. Jazia, na figura do presidente, como um mito que propaga a política cultural do Estado Novo, uma combinação entre elementos vistos no trabalhador disciplinado brasileiro, o modelo ideal, o “otário”, e elementos do “malandro”, da esperteza, flexibilidade e sagacidade ao transitar entre os espaços da elite e da classe trabalhadora. Com a institucionalização do samba, se torna perceptível também uma disputa política pela determinação do que é a cultura nacional brasileira, onde distintas classes intercedem pelo uso político do mesmo gênero musical, com seus discursos e interesses distintos.
  4. Contudo, essa transformação não é completa, não mata a presença do mito da malandragem. O “espírito” do malandro subsiste em sua ambiguidade no discurso. Apesar de ser perceptível que o tom dos sambas cariocas, principalmente a partir de 1937, sofre uma ligeira mudança, onde o discurso do malandro passa a ser, sobretudo, o de um “malandro restaurado”, que recorda-se com saudosismo dos seus feitos passados, mas que na atualidade “anda na linha”, nos conformes com as normas sociais, tal como qualquer outro proletário (“otário”), não há um apagamento do conteúdo crítico de suas denúncias, o plano de fundo econômico-cultural é o mesmo, que pese as grandes transformações que a Revolução de 30 proporcionou, pois ainda tratava-se dos dilemas de proletários, da massa, em uma dinâmica econômica e social capitalista. O personagem ainda está confinado ao lugar de proletário e ainda demonstra, em sua ambiguidade poética, a insatisfação de estar confinado nas hierarquias da estrutura social de classes, no trabalho alienado, e expressa as suas impressões sobre as novas condições como trabalhador após as transformações da Revolução de 30, como exemplificado em diversas letras no texto fichado.

Seu Martins Vidal, eu moro no Lins e sou o tal
Que há muito tempo exerço uma fiel profissão
Eu não sou mais aquele antigo trapalhão
Esse otário foi roubado em Copacabana
Há muito que eu não vou em cana
E não saio de casa há mais de uma semana
Seu Zé, por favor, olhe a minha feição
E diga aí pro doutor se sou o verdadeiro ladrão
O otário me olhou, me tornou a olhar
Ficou encabulado, ficou meio encafifado
Senti mão no meu ombro, um barulho de chaves e eu encanado
Vou apelar pra’ um magistrado porque um advogado, é, não adianta nada
Pois há tempos atrás eu fui o Morengueira, o rei da trapalhada
Retratos e fichas tenho na Central, em todo lugar,
Fiz, no duro, juro, muito chefe de família chorar
Mas hoje em dia, eis porque me desespero,
Posso ver a maior galinha morta ali, não quero
Pinta brava como sou, sei o que acontece
Quando a gente não se abre, não resolve
Tem que assinar o processo, artigo 399
De repente uma voz, do Zé dos Anzóis, quase dou um acesso
Chegou a hora fatal, vou assinar o meu mal, que injusto processo
Eu finjo não ouvir, mas o chafra me chama, me abate o coração,
Meu Deus que horror, pela décima vez vou visitar a detenção
E entro na sala de investigação,
‘O senhor pode ir embora’
Vi um homem em cana, era uma pinta bacana, o verdadeiro ladrão
Vou me pirar desta pensão, comigo não. (“Averiguações” — Moreira da Silva In MATOS, 1982, pg. 109)

--

--

Yaci

filosofia da história, ciência política, poiesis e relações internacionais.